Marco da eletrônica, a
música virou também a pedra fundamental do funk carioca
Quando lançou, em dezembro
de 1982, a emblemática “Looking for the perfect beat” — mais tarde celebrada
por Marcelo D2 —, Afrika Bambaataa não sabia que já tinha encontrado o batidão
perfeito. Alguns meses antes, ao lado do produtor Arthur Baker e do grupo The
Soulsonic Force, com o auxílio de uma bateria eletrônica, ele havia criado uma
música absolutamente original, um funk minimalista e futurista (para a época),
no qual parecia fazer robôs dançarem no ritmo de James Brown.
Trinta anos depois do seu
lançamento, aquela música, batizada “Planet rock” — que tomava “emprestado”
ideias dos grupos Kraftwerk (alemão), Yellow Magic Orchestra (japonês) e Babe
Ruth (inglês) — continua ecoando, sendo considerada não apenas um divisor de
águas do então emergente hip-hop, mas também o som que influenciou
decisivamente a música eletrônica, gerando um estilo (o electro) e abrindo
portas para outros fundamentais (techno, house, trance etc). De quebra, os sete
minutos e 31 segundos de “Planet rock” — originalmente lançada num vinil de 12
polegadas pela gravadora Tommy Boy — tiveram um efeito colateral ainda mais
inesperado, tornando-se a pedra fundamental no surgimento do funk carioca. Não
por acaso, parte das celebrações em torno desse clássico vai acontecer no Rio,
onde Bambaataa se apresenta em dezembro, possivelmente no Circo Voador, no dia
21.
— Queríamos fazer algo
completamente diferente de tudo o que se escutava naquela época — lembra
Bambaataa, em entrevista por telefone, com um discurso repleto de misticismo. —
A Guerra Fria ainda existia, e, com ela, a sombra de um conflito nuclear, mas
também sentíamos que estávamos prestes a entrar na era eletrônica, no nosso
caso representados pela TB-308 (a bateria eletrônica da Roland). Além desse
contato com as máquinas, que evidentemente se tornaria maior, havia o sonho de
viagens espaciais, de evolução da raça humana, de proteção do planeta Terra, a
nossa rocha no espaço, e da busca de novos horizontes. “Planet rock” foi uma
mistura de tudo isso.
O desafiador chamado à dança
da letra do MC The Globe, do Soulsonic (”Party people, can y’all get funky?”),
e seu apelo à “socialização” das pistas representavam um pouco do
revolucionário contexto em torno da música. A Sugarhill Gang já havia lançado
“Rapper’s delight” (por aqui, batizada de “Melô do tagarela”), considerado o
primeiro rap da História. Mas até então os pioneiros rappers faziam suas rimas
em cima de faixas de disco e de funk (a própria “Rapper’s delight” era uma
recriação de “Good times”, do Chic).
Bambaataa sabia bem disso.
Ex-líder de uma gangue no Bronx, ele havia se tornado um misto de pacificador e
agitador cultural, à frente da sua Zulu Nation, que misturava dançarinos,
grafiteiros e DJs. Ao lado do lendário DJ Kool Herc, ele começou a fazer festas
nos conjuntos habitacionais da região, as chamadas “block parties”.
Concorridas, elas acabaram chamando a atenção do empresário Tom Silverman, que
viu na portentosa figura de Bambaataa a melhor forma de trazer credibilidade de
rua para sua novata e independente gravadora.
Contratado pela Tommy Boy em
1981, Bambaataa debutou com o single “Jazzy sensation”, criado com a base de
“Funky sensation”, um balanço disco da cantora Gwen McCrae. Para o seu segundo
lançamento, ele sabia que precisava inovar e avançar bem mais. As ruas pediam
isso.
— As danças estavam ficando
diferentes, as rimas, mais apuradas, mas faltavam músicas próprias para
acompanhar aquele novo universo. Não bastava mais tocar coisas já existentes,
fossem elas disco, soul ou funk. Era preciso criar algo novo — conta ele. — E
eu era apaixonado pelo Kraftwerk e pelo disco “Trans-Europe express”, com
aquele incrível groove gélido, sintético. Gostava também da Yellow Magic
Orchestra, do balanço do Babe Ruth e da trilha sonora de John Carpenter para o
filme “Halloween”. Eram sons muito avançados para a época. Nosso funk teria que
ser uma mistura de tudo isso e ir além.
E foi. Bambaataa e Baker
contrataram o tecladista John Robie para que ele reproduzisse a melodia de
“Trans-Europe express” — o que, mais tarde, geraria um processo por violação de
direitos autorais, resolvido amigavelmente entre as partes. A bateria
eletrônica, uma novidade para a época, foi alugada de um músico de estúdio, e
nela foi programada a marcante batida de “Planet rock”, com partes de
“Numbers”, também do Kraftwerk.
— Os timbres daquela batida
são incríveis. Ainda hoje é difícil não se arrepiar ouvindo “Planet rock” —
garante o DJ Sany Pitbull, um dos mais avançados do novo funk carioca. — Foi
uma música que mudou tudo. Ninguém usava bateria eletrônica nas pistas. Os
balanços eram todos criados por bandas de verdade. Aí de repente vem aquele
pancadão futurista. Todo mundo pirou.
Inicialmente, “Planet rock”
não entrou nas paradas de sucesso da “Billboard “ — embora mais tarde fosse
classificada como uma das maiores canções de todos os tempos pela revista
“Rolling Stone”. Mas Bambaataa lembra o impacto que ela causou quando ele tocou
o vinil pela primeria vez num baile no Bronx.
— Foi uma histeria. Lembro
que tive que fazer três rewinds (a técnica de voltar um disco até o começo com
as mãos) porque as pessoas não paravam de gritar. Nas caixas de som, “Planet
rock” soava ainda mais forte. Depois dela, sabíamos que não havia mais como
voltar atrás. O futuro estava traçado. E ele era eletrônico e funky.
Lançada no Brasil em 1985,
numa coletânea da Tommy Boy (o vinil duplo “Greatest hits”), “Planet rock”
transformou também o universo dos bailes de subúrbio do Rio, como lembra o DJ
Marlboro.
— “Planet rock” é o marco
zero do funk e da música eletrônica — afirma ele. — Eu já tocava Kraftwerk nos
bailes, mas não tinha o mesmo peso de “Planet rock”. Essa coisa de unir a
batida de um grupo alemão com a levada do funk de James Brown foi uma sacada de
gênio. As pessoas piravam na pista e vinham me perguntar como faziam para
dançar aquilo. Quando levei o Bambaataa a um baile no Complexo do Alemão,
muitos anos depois, ele quase chorou vendo a massa dançar. Eu disse a ele:
“Isso aí foi você que criou.” Carlos Alburquerque.
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